A DOENÇA DE ALZHEIMER NÃO PODE COM A MÚSICA.POR QUE ESQUECEMOS?

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O gráfico mostra (em vermelho, acima) o giro cingulado anterior, onde as memórias musicais são armazenadas. Mais abaixo, visão bilateral de três biomarcadores da doença de Alzheimer; em vermelho, as áreas mais afetadas. / MPI f. Human Cognitive and Brain Sciences

A doença de Alzheimer não pode com a música

A área do cérebro que abriga as memórias musicais é menos danificada pela doença

Por Miguel Angel Criado

Sem saber bem por que, a música é uma das poucas armas que os terapeutas têm para fazer frente à progressão da doença de Alzheimer. Apesar da devastação provocada por essa doença no cérebro e, especialmente, na memória, uma grande parte dos doentes conserva suas memórias musicais, mesmo nas fases mais tardias. Agora um estudo mostra as possíveis causas desse fenômeno: a música é armazenada em áreas do cérebro diferentes daquelas do resto das memórias.
O lobo temporal, porção do cérebro que vai da têmpora à parte de trás da orelha é, entre outras coisas, a discoteca dos humanos. Ali é gerida nossa memória auditiva, inclusive as canções. Estudos com portadores de lesão cerebral respaldam a ideia de que guardamos a música em uma rede centrada nessa área. No entanto, o lobo temporal também é a primeira parte do cérebro a sofrer os estragos do mal de Alzheimer. Como se explica então que muitos doentes não saibam o próprio nome ou como voltar para casa, mas reconhecem aquela canção que os emocionou décadas atrás? Como alguns doentes são incapazes de pronunciar uma palavra, mas, entretanto, conseguem cantarolar melodias que fizeram sucesso quando ainda podiam se lembrar?
Para tentar responder a essas perguntas, pesquisadores de vários países europeus liderados por neurocientistas do Instituto Max Planck de Neurociência e Cognição Humana de Leipzig (Alemanha) realizaram um experimento duplo. Por um lado, procuraram as áreas do cérebro que são ativadas quando ouvimos música. Por outro lado, uma vez localizadas essas áreas, analisaram se, em pacientes de Alzheimer, tais áreas do cérebro apresentavam algum sinal de atrofia ou, ao contrário, resistiam melhor à doença.
Para localizar onde o cérebro guarda a música, os pesquisadores fizeram trinta indivíduos saudáveis ouvirem 40 trios de canções. Cada trio consistia em um tema muito conhecido tirado das paradas de sucessos desde 1977, canções de ninar e música tradicional alemã. As outras duas canções eram, pelo estilo, tom, ritmo ou estado de ânimo, semelhantes à primeira, mas foram selecionadas do grupo dos fracassos musicais para que não fossem conhecidas.

Muitos doentes não sabem o próprio nome, mas reconhecem as canções que os emocionaram
Tal como explicado na revista Brain, o desenho do experimento foi baseado na hipótese de que a experiência de ouvir música é, para o cérebro, diferente daquela de lembrá-la e nos dois processos atuam diferentes redes cerebrais. Durante as sessões, a atividade cerebral dos voluntários foi registrada mediante a técnica da ressonância magnética funcional (fMRI). Eles descobriram que a música está alojada em áreas do cérebro diferentes das áreas onde outras memórias são armazenadas.
"Ao menos os aspectos-chave da memória musical são processados em áreas do cérebro que não são normalmente associadas com a memória episódica, semântica ou autobiográfica", diz Jörn-Henrik Jacobsen, neurocientista do Max Planck e coautor do estudo. "Mas temos de ser muito cautelosos quando dizemos algo tão absoluto como isso", acrescenta com prudência. As áreas que apresentaram maior ativação ao rememorar as canções foram o giro cingulado anterior, localizado na região média do cérebro, e a área motora pré-suplementar, localizada no lobo frontal.
Parte dessa prudência pode vir da metodologia adotada para a segunda parte da pesquisa. O ideal teria sido poder estudar a localização das memórias musicais diretamente em pacientes com Alzheimer e não em pessoas saudáveis. Mas, como salienta Jacobsen, não é fácil conseguir que um número significativo de pacientes participe de um trabalho como esse. Além disso, existe também o problema de que muitos dos afetados conseguiam se lembrar da canção, mas não conseguiam verbalizar essa recordação. Por isso, foi realizarado um segundo experimento para ver se as áreas onde a música é armazenada são igualmente ou menos afetadas pela doença do esquecimento.

O cérebro processa em zonas diferentes a experiência de ouvir música e as lembranças musicais
Para isso, foram estudados 20 pacientes com a doença de Alzheimer e seus resultados foram comparados com os de outros trinta indivíduos saudáveis, ambos os grupos com média de idade de 68 anos. O objetivo era saber em que estado se encontravam as áreas musicais em relação ao resto do cérebro. No diagnóstico e no acompanhamento da doença são utilizados principalmente três biomarcadores, um deles é o grau de deposição do peptídeo β-amiloide, uma molécula que tende a se acumular formando placas nas fases iniciais da doença. Outra pista é a alteração do metabolismo da glucose no cérebro. E, finalmente, a atrofia cortical, um processo natural à medida que se envelhece, mas que na doença de Alzheimer é mais pronunciado.
As medições mostraram que os níveis de deposição de beta-amiloide não apresentaram diferenças significativas. Nas áreas musicais dos doentes o metabolismo da glicose estava em níveis normais e a atrofia cortical era até 50 vezes menor do que em outras áreas do cérebro. Para Jacobsen, "mostrar um hipometabolismo inferior e uma atrofia cortical em comparação com as outras áreas do cérebro significa que não são tão afetadas no curso da doença". E acrescenta. "Mas isso só pode ser observado, acredito que ninguém possa explicar por que isso é assim. No entanto, o giro cingulado anterior mostra uma conectividade aumentada nos pacientes de Alzheimer, o que poderia significar até mesmo que funciona como uma região que compensa a perda de funcionalidade das outras".

As recordações mais duradouras estão ligadas a uma experiência emocional intensa, e a música está muito relacionada com as emoções"
"As recordações mais duradouras são aquelas ligadas a uma experiência emocional intensa e a música tem uma relação estreita com as emoções; a emoção é uma porta de entrada para lembrar", diz a musicoterapeuta da Fundação Alzheimer Espanha, Fátima Pérez-Robledo. Os resultados do estudo confirmam isso. "Muitos doentes não lembram o nome de algum parente, mas lembram da letra de uma canção", diz ela.
Em seu trabalho diário, Pérez-Robledo atua muitas vezes como DJ. Se o paciente está em um estágio inicial, ele mesmo sugere as canções que o marcaram. "Procuramos em sua história musical as canções de sua infância, da adolescência, para evocar memórias. Os pacientes as escutam, dançam ou cantam", diz a terapeuta. Quando o paciente já não pode dizer de que canções gostava, ela experimenta as músicas mais ouvidas quando era criança ou, como em muitos casos, é o cônjuge quem escolhe aquela canção que ouviam quando se conheceram.

O que lembraremos antes de esquecer?

O Alzheimer como doença irredutível aos heróis e às ilusões que a modernidade nos legou

Por Eliane Brum 

Chris Graham tem 39 anos e tem Alzheimer. Ex-militar, casado, três filhos, ele herdou a mutação genética que causa um tipo raro de demência, conhecido como “Alzheimer familiar”. O pai morreu da doença aos 42 anos. Seu irmão, Tony, tem 43 anos, está internado numa instituição e já não consegue falar nem se alimentar sozinho. Outros parentes já morreram, todos ao redor dos 40 anos. Chris, que já começa a ter pequenos lapsos de memória, foi desligado do exército em janeiro, depois de 23 anos de serviço. Em seguida, virou notícia na imprensa britânica, com repercussão internacional: anunciou que partiria neste mês de abril para uma aventura de bicicleta de 26.000 quilômetros, pela costa do Canadá e dos Estados Unidos, na tentativa de mudar a percepção que o mundo tem do Alzheimer. Na campanha “Dementia Adventure – The Long Cycle Around, ele arrecada dinheiro para a pesquisa de uma cura para a doença que possa beneficiar as gerações futuras, o que pode incluir seus próprios filhos. Ao explicar por que decidiu encarar o que chama de “a viagem da minha vida”, prevista para durar um ano, Chris brinca: “Não deixarei algo pequeno como a demência ficar no meu caminho”.
Em suas próprias palavras, Chris Graham carrega em sua empreitada “uma bicicleta, senso de humor e a boa e velha determinação britânica”. Na lógica da “guerra contra a doença”, ele explica: “Para mim, é simples: é preciso atacar diretamente o inimigo, por isso quero ajudar a apoiar as pesquisas”. Até mesmo o primeiro-ministro, David Cameron, elogiou sua “garra e determinação fora do comum”. Chris Graham virou, em mais de uma declaração e reportagem, uma “inspiração”. Entre seus doadores, a palavra “épico” aparece como adjetivo para o desafio. Entre as dezenas de definições, uma se destaca: “herói”.
É nesse ponto que o surgimento de Chris Graham e sua ousada aventura me inquietam. O Alzheimer, uma doença que até então se mostrava irredutível aos heróis, parece ter ganhado um. Mas qual é a travessia mais profunda de Chris, para muito além da quilometragem sobre uma bicicleta pela costa de dois países em outro continente? E o que ela diz sobre essa época?
Em geral, o Alzheimer, que responde por cerca de 70% dos casos de demência, é relacionado ao envelhecimento. A possibilidade bem mais rara de aparecer em pessoas entre os 30 e os 50 anos, como Chris Graham e parte de sua família, ficou conhecida a partir do belo filme Para Sempre Alice, ainda em cartaz nos cinemas, que deu à atriz Juliane Moore o Oscar de melhor atriz em 2015. O filme é baseado no livro de mesmo nome escrito por Lisa Genova, PhD em neurociência pela universidade de Harvard. Nele, Alice Howland, uma renomada professora de linguística, palestrante e autora de obras de referência na sua área de pesquisa, descobre a doença logo após seu aniversário de 50 anos. Herdara do pai e, antes que pudesse ficar com raiva daquela distante e confusa figura paterna, cujo alcoolismo havia mascarado a demência, descobriu que a legara a pelo menos um de seus próprios filhos. As palavras, para Alice, que vivia delas, vão rapidamente se tornando uma paleta de cores que ela já não mais alcança.
Em Para Sempre Alice, num certo momento há um diálogo revelador entre a protagonista e sua filha mais nova, que resume de forma muito precisa o que é a doença na percepção de quem está no momento mais brutal, aquele em que percebe o que está perdendo apenas porque ainda não perdeu tudo. A filha pergunta a ela qual é a sensação de ter Alzheimer. E ela responde:
“Sei que não estou confusa nem me repetindo neste momento, mas, minutos atrás, não consegui me lembrar da palavra cream cheese e estava tendo dificuldade para acompanhar a conversa entre você e seu pai. Sei que é só uma questão de tempo até essas coisas tornarem a acontecer, e o intervalo entre as ocorrências está ficando menor. E as coisas que acontecem estão ficando maiores. (...) Não confio em mim mesma. (...) Eu sei o que estou procurando, mas meu cérebro não consegue chegar lá. É como se você resolvesse que queria aquele copo de água, mas sua mão se recusasse a pegá-lo. Você lhe pede com delicadeza, você a ameaça, mas ela não se mexe. Por fim, pode ser que você consiga fazê-la se mexer, mas aí ela pega o saleiro, ou derruba o copo e derrama toda a água na mesa”.

Para Chris Graham, aos 39 anos, a questão crucial do Alzheimer parece ser a de criar uma memória para que possa ser lembrado pelo mundo
A tragédia do Alzheimer ou de qualquer outra demência é o desaparecimento de si. Ao matar as células do cérebro, a doença assassina a memória, a ponto de aquele que é não se lembrar mais de quem é. E, assim, deixar de ser. Aos poucos, ou às vezes de forma acelerada, a pessoa passa a já não reconhecer seus filhos, o homem ou mulher que ama ou amou, a casa onde viveu, os objetos que contam dela, as palavras de seu alfabeto, o mapa da geografia cotidiana. Sem memória não somos nada além de um invólucro de carne que não reconhece a si mesmo. Os doentes de Alzheimer, em estágio avançado, são vistos como aqueles que respiram mas não existem. Entre as tantas brutalidades à espreita de um corpo mortal, talvez a de que esse corpo insista em viver quando há tanto tempo já foi desabitado, esse corpo como uma casa abandonada e vazia, despida de móveis e de lembranças, seja a perspectiva mais assustadora.
Ao descobrir a doença aos 34 anos, porém, Chris Graham traz outros dilemas ao palco em que se colocou. Neles, ele parece nos despir, nós como pessoas dessa época, em mais de um sentido. Se para os velhos que se descobrem com Alzheimer a ameaça maior é se esquecer de quem são, esquecer-se de suas realizações e daquilo que os constituiu, para Chris a questão parece ser outra, pelo menos no que se pode depreender de suas entrevistas públicas. Para Chris, a questão, ainda, é criar uma memória. Numa das cenas de Para Sempre Alice, quando ela visita uma casa que abriga pessoas com vários tipos de demência, em busca de um lugar no futuro perigosamente próximo, a funcionária aponta para um velho que dá passos vagos com o andador e diz: “Este é o fulano. Ele fez parte da equipe que botou o primeiro satélite no espaço”. Para Chris, a questão parece ser a de que ele ainda precisa colocar o seu satélite no espaço antes de se esquecer que o fez.
Aos 34 anos, se você não tem um talento bem acima da média ou é especialmente sortudo, e poucos o são, você ainda está se debatendo para se assegurar, mesmo que intimamente, do seu lugar. É o estágio intermediário entre a eternidade dos 20, que já ficou para trás, onde tudo era possível, e o espectro dos 40 logo ali na frente, em que o balanço virá, junto com os primeiros sinais, ainda suaves, de que o corpo já começa a trair. Com um pouco de sorte e um esforço maior, ainda há tempo para uma virada, mas ela será feita com pernas menos rijas. Chris, que sonhava viajar, conseguiu como militar ingressar no serviço de correio postal. Mas quem achará isso tão importante quando ele se for?
Ao saber que morreria jovem e, antes de morrer, se esqueceria de si, Chris parece ter se preocupado em construir um legado —ou uma memória para legar. Mais importante do que aquilo que ele não se lembrará parece ser a possibilidade de que não se lembrem dele da forma como ele gostaria de ser lembrado. Mais importante do que não ser para si é não ser para os outros. E não apenas os outros perto, seus filhos, sua mulher, seus amigos, mas o mundo inteiro. É assim que, aos 39 anos, ele empreende essa travessia de bicicleta que inclui uma volta pela costa dos Estados Unidos, o país do culto aos heróis, por excelência. A terra dos winners (vencedores) —e, por consequência, dos losers (perdedores), já que um não pode existir sem o outro.
A bicicleta tem a marca do mundo sustentável e também a marca da saúde e da potência, já que é preciso estar em ótima forma física para dar conta da quilometragem. É o contrário da fraqueza e da deterioração física, dos passos claudicantes de um corpo com dificuldades para se sustentar, que assinalam tanto a doença quanto a velhice —duas marcas que pertencem ao Alzheimer, como era visto até então. Completando ou não sua travessia, na campanha de divulgação e de arrecadação de sua aventura, Chris já se tornou uma “inspiração”. Já se tornou até mesmo um exemplar do brio do homem britânico em sua disposição de conquistar o Novo Mundo, a ponto de sua determinação ser elogiada pelo primeiro-ministro. Mesmo antes da partida, Chris Graham já tinha cumprido boa parte da sua jornada de herói.

O Alzheimer parecia irredutível às ilusões de potência que a modernidade nos deu
É, ao mesmo tempo, pungente e trágica a travessia mais profunda de Chris Graham, sua volta não medida em quilômetros. Inventar uma vida é a tarefa mais fascinante de um humano, exatamente pelo tanto de improvável e de absurdo que contém. É, como sabemos, a nossa primeira ficção. E a empreendemos nus e com tão pouco. Parece que Chris se arrancou do esquecimento antes do esquecimento, do lugar de vítima de uma doença terrível e, no caso dele, precoce demais, e deu uma volta no destino. Uma volta que só pode se consumar na narrativa e no legado para o outro, já que, no fim da jornada, ele próprio se esquecerá de tudo isso antes de morrer tragicamente cedo.
Jamais subestimo os sentidos criados por um outro para a sua vida. Mais ainda num momento tão limite. Chris Graham tenta algo admirável com o pouco que tem. E sua empreitada produz não só informação como reflexão sobre a doença, o que sempre ajuda a reduzir preconceitos e ignorância. Mas, como Chris se aventura em público, para fora, sob as luzes dos holofotes, penso que é importante pensar também nos ecos públicos de sua escolha e do que ela diz sobre esse mundo como parte da reflexão possível sobre o acontecimento produzido por ele.
O Alzheimer parecia ser uma doença irredutível às ilusões de potência que a modernidade nos deu. Não havia como arrancar heroísmo dali, já que não havia como fazer um herói de uma pessoa esquecida de tudo o que fez ou foi, esquecida até mesmo da própria doença. Se havia um herói, o Alzheimer marcava justamente a sua queda e a ruína do seu mundo. O Alzheimer se mostrou mais irredutível à potência até mesmo que a “loucura” (aspas bem escolhidas), já que em alguns momentos houve gênios loucos nas artes e na literatura, e houve aqueles arrancados do anonimato dos hospícios pela transcendência de sua obra ali descoberta.

A doença do esquecimento foi usada neste caso, em fascinante paradoxo, para produzir uma memória heroica
Para o Alzheimer parecia não haver essa saída. A doença do esquecimento costuma ser a lembrança perturbadora da velhice e da morte, tudo o que essa época abomina e teme mais do que qualquer outra. As pessoas com Alzheimer ou outro tipo de demência em estágio avançado são reduzidas a vagar pelos corredores de instituições como os mortos-vivos da série pós-apocalíptica Walking Dead. Ou a se deixar esquecer numa cadeira ou numa cama, os olhos vazios, a cabeça tombada. São essas as imagens que chegam até nós. O Alzheimer nos lembra que, ao final, com ou sem demência, a velhice e a morte são nossa certeza intransponível já ao nascer e nenhuma ciência foi capaz de nos salvar dela. De certo modo, as cirurgias plásticas mascaram a perda da juventude mais do que a adiam. E a longevidade é, ao mesmo tempo, uma bênção e uma maldição, já que é também preciso conviver por mais tempo com o declínio, assim como com o mundo da gente que morre antes da gente, condenados a um crepúsculo em câmera lenta.
Chris Graham talvez seja a primeira tentativa, ou pelo menos a que mais repercutiu, de se forjar um herói no Alzheimer. Um herói jovem e ainda potente, capaz de uma grande aventura forçando seus músculos a pedalar uma bicicleta em outro continente. A doença do esquecimento é usada, em fascinante paradoxo, para produzir uma memória heroica.
Até então, os heróis da guerra contra as doenças que continuam a nos matar, concreta ou simbolicamente, eram portadores de outras patologias, como o câncer. Podemos lembrar, entre inúmeros exemplos, de Randy Pausch, o professor americano com câncer pancreático que escreveu A Lição Final. Para ele, morrer parecia ser um fracasso. Lutar contra o tumor e não vencê-lo poderia colocá-lo num lugar inaceitável para a sociedade americana e para si mesmo, ao transformá-lo, ainda que de forma involuntária, num perdedor. Pausch superou esse impasse ao transformar o fim de sua vida num exemplo de sucesso. Ele não pôde vencer o câncer, que o matou em 2008. Mas, naquilo que era essencial para ele e para a sociedade a qual pertencia, vencera. Conseguira fazer do seu morrer um best-seller internacional. Deixava para seus filhos o legado de um lutador. Ele, que até então era apenas um bem sucedido professor universitário, alcançou a fama e o mundo ao escrever um livro considerado “inspirador”. Um livro de alguém que se recusava a desistir de combater a doença.
Em Para Sempre Alice, num determinado momento a personagem lamenta não ter câncer em vez de Alzheimer, o que garantiria a ela uma imagem positiva na sociedade. Diz algo mais ou menos assim: “Eu poderia andar por aí com fitinhas coloridas no braço e arrecadar fundos para campanhas da doença”. Em vez disso, restou a ela o vexame de não se lembrar das aulas que tinha de dar, de onde estava quando fazia sua corrida habitual, dos nomes dos colegas, da receita de pudim de pão do Natal, do sabor do sorvete que há décadas era sempre o mesmo pedido na sorveteria. Logo em seguida já não acharia o banheiro da própria casa e deixaria de reconhecer os mais próximos, gerando primeiro pena, depois desconforto, por fim fuga. Em vez de admiração, ela agora produzia constrangimento no universo em que se acostumara a brilhar. O Alzheimer a tornava alguém que não conseguia acompanhar conversas e, por fim, a transformou num bibelô de carne incômodo na vida dos que amava, seu esquecimento uma lembrança terrível de um futuro que ninguém quer. Na ficção de Alice ainda não existia a realidade de um Chris Graham, provocando aplausos e exibindo potência no ato que precede o fim.
Como disse à imprensa Hilary Evans, da Alzheimer’s Research UK, organização para a qual Chris Graham levanta fundos, “é urgente conseguir mais investimento em pesquisa, já que para cada cientista que trabalha no campo das demências há seis ou sete envolvidos na pesquisa do câncer”. Talvez alguns pensem, com bastante senso lógico, que o que faltava para aumentar o investimento na busca para uma cura do Alzheimer fosse juventude e uma história inspiradora, já que os velhos esquecidos em corpos deteriorados são algo que a população prefere esquecer. Para essa virada de imagem Chris Graham parece ter sido um surpreendente candidato.

Tenho uma desconfiança aguda da cultura dos heróis de guerra, mais ainda quando envolve doença e morte
Cada um arranca sentido da forma que pode e, como já disse antes, mas não custa repetir, é preciso manter profundo respeito pelos significados que o outro conseguiu criar diante da brutalidade da doença e da morte. A vida nada mais é do que criação e recriação de sentidos. Meu problema com a imposição de “lutar” contra a doença, e de algum modo “vencer” a morte, é justamente a sua valorização como a melhor forma de lidar com a doença e a morte. Ou, pior, como a única forma digna. Tenho uma desconfiança aguda da cultura dos heróis, de modo geral, mais ainda quando envolve doença e morte. Do mesmo modo que abomino a cultura dos winners e losers, que contamina cada vez mais o Ocidente e já infectou a sociedade brasileira.
Ninguém vence a morte. E ninguém consegue ficar jovem para sempre. Me parece que a narrativa da guerra pessoal contra doenças que matam apesar de toda a tecnologia existente é um tanto duvidosa. Tão digna quanto a escolha de Chris Graham e de Randy Pausch é a escolha de todos os anti-heróis que escolhem usar o tempo que lhes resta perto dos que amam, em casa, sem alarde, ou se enfiar em algum canto que gostem enquanto for possível, sem virar notícia. Assim como há dignidade em se isolar ou em escolher não fazer nenhum tratamento. E acredito que há dignidade também em preferir tirar a própria vida antes que a doença o faça. Da vida só sabe quem a vive. Do final da vida também.
Digo isso porque testemunhei várias vezes, muitas mesmo, a opressiva imposição a quem tem uma doença que o levará à morte. Tanto por parte dos médicos e outros profissionais da saúde, como por parte dos familiares, que não suportam a ideia de perder aquela pessoa nem o aviso que a morte do outro sempre é sobre o seu próprio fim. Como se não bastasse ter uma doença que provoca dor e declínio físico, ou esquecimento e fragilidade, ainda é imposto àquele que adoece o imperativo de “lutar”, mesmo quando a luta já não é possível. Há tanta coragem em lutar quanto em aceitar que não é possível lutar e preferir passar o tempo que resta sem grandes epopeias midiáticas nem intervenções cirúrgicas ou tratamentos com remédios pesados que apenas roubam a qualidade da vida que ainda é vida. Não acredito que exista grande vantagem para o morto quando o elogiam no velório, dizendo: “Foi um lutador. Lutou até o fim”. Como se isso lhe conferisse valor, ou mesmo amenizasse a “traição” de ter fracassado e morrido, deixando todos os outros sós e apavorados. Mas até mesmo a personagem Alice, ao fazer seu último discurso, não mais na universidade, mas num evento de Alzheimer, sucumbiu à tentação ao dizer: “Eu não estou sofrendo (???!!!!!). Eu estou lutando.” Os “???!!!!!”são intromissão minha.

O retorno de Henry ao mundo, ao escutar a música de sua vida, mostrou que ele estava vivo por dentro
Sobre o Alzheimer, já não mais imune à narrativa dos heróis de guerra, recomendo com muita, mas muita veemência mesmo, um premiado documentário chamado Alive Inside: a Story of Music and Memory, que pode ser traduzido como “Vivo Por Dentro: uma História de Música e Memória”. Para quem tem Netflix, ele está lá, com legendas. Mas também pode ser comprado no próprio site. É a trajetória real do americano Dan Cohen, um assistente social que trabalhou com computadores a maior parte da vida, por instituições que abrigam pessoas com Alzheimer e demências variadas, instituições onde os corpos estão submetidos à cultura da medicalização. Dan pediu ao diretor do filme, Michael Rossato-Bennett, que gravasse sua experiência por um dia, mas Michael se encantou de tal maneira pelo que testemunhou que ficou três anos gravando. Dan, um homem um pouco encurvado, meio careca, um par de óculos comuns, roupas quase antiquadas, começando ele mesmo a envelhecer, tem uma obsessão: colocar fones de ouvido entre as orelhas de gente esquecida de si mesma. Em seguida, liga a música que a pessoa mais gostava ou, quando não consegue descobrir qual é pelas conversas com familiares, tenta músicas da época de sua juventude.
Dan, alguém por quem passaríamos na rua sem notar, é, ele mesmo, emocionante. Mas o que acontece quando ele bota fones de ouvido entre as orelhas de gente que parecia morto-vivo, zumbizando numa dessas casas de velhos, é totalmente acachapante. Descobrimos então que aquelas pessoas estão “vivas por dentro”. Henry é um deles. Cabeça tombada, olhos vazios, não reconhece nem a própria filha. Henry só respira. E então Henry escuta a música da sua vida. E o que testemunhamos é alguém ressuscitando, um daqueles milagres de gente.
Henry levanta a cabeça, arregala os olhos. Henry canta, Henry dança com os pés, Henry dança com as mãos. Henry lembra. O que ele lembra? A época mais feliz. Que, como de hábito, não é nenhum momento apoteótico, nada que vire notícia, apenas o tempo em que ele, ainda menino, fazia entregas de bicicleta para uma mercearia. Henry estava vivo, a gente é que não sabia. E, quando ele revive, ao seu redor todos também revivem, uma velha senhora orvalha os olhos e sabemos o que ela está sentindo porque também sentimos. O retorno de Henry ao mundo dos vivos, num vídeo de poucos minutos, foi colocada na internet antes da finalização do documentário e se transformou num fenômeno viral, com milhões de acessos. Não faço o link aqui porque acho que Henry é ainda mais bonito no contexto do documentário.
O neurologista e escritor Oliver Sacks, que no início deste ano contou sobre como decidiu viver o seu morrer numa carta belíssima, aparece algumas vezes no documentário para explicar a ação da música sobre o cérebro humano. Há também outros “especialistas”, a parte menos interessante e um pouco excessiva do filme, mas justificada pela necessidade de legitimar uma proposta tão heterodoxa e muito mais barata que o doping coletivo que costuma se fazer nessas instituições. Oliver Sacks é sempre fascinante, como quando explica porque a música se faz ponte entre o mundo de dentro e o de fora: “A música é inseparável da emoção. Portanto, não é apenas um estímulo fisiológico. Se funcionar irá chamar a pessoa inteira, as diversas partes do cérebro, a memória e as emoções. (...) O filósofo Kant disse que a música era arte vivificante. E Henry foi vivificado. Voltou à vida”.
A música vivificou Henry e vários outros. O que Schubert fez por Denise e os Beatles por Marylou é incrível. Entre todos, o que mais me toca é Johnny, o homem sem uma orelha. Ah... Johnny. O que ele descobriu de si e, ao olhar ao redor pela primeira vez depois de tanto tempo, descobriu dos outros, dos que chamou de “minha turma”, é lindo. Johnny é lindo. Mas não vou contar mais, porque estragaria a experiência que cada um terá se quiser.
Johnny e todos os anti-heróis cujo grande feito, a gigantesca travessia, é despertar pela música e recordar sua extraordinária vida comum, nos lembram de acordar. E nos trazem a eterna questão da morte, tão inevitável quanto o morrer: o que lembraremos antes de esquecer? Ou, dito de outro modo: o que é realmente importante na nossa vida? Agora, enquanto a vivemos?
O que Chris Graham lembrará no final tragicamente humano que o espera, depois de sua jornada de herói, ao escutar a música da sua vida?
A doença e a morte podem assustar. E assustam. Mas elas também lembram os vivos de não se esquecer de viver.

*Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum

Fonte:http://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/23/ciencia/1435064927_042235.html


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